Amélia parece não gostar de mim.
Moça linda, e me ignora. Tudo bem. Não sou bonito bem sei, mas não tão feio
que seja deixado às traças.
Também não gosto dela. Mas gostaria de gostar.
Afinal, sua pele macia, seus cabelos sedosos, seus olhos castanhos
esverdeados, seus seios formosos, seu corpo cheio de curvas... Afe! Eu só consigo vê-lo (o corpo, o corpo)
sempre escondido debaixo de panos do pescoço aos tornozelos. Nem tanto pano
assim esconde tamanhas sensualidade e beleza.
E seu cheiro? Cheiro? Como cheiro? Perfume, gostoso perfume.
De segunda a sexta-feira, cedinho, ela passa pela calçada em frente de
casa, e quando está dobrando a esquina de cima, o perfume continua no ar... Nosso papagaio começa a cantar “Eu tenho tanto
pra falar...”, cantando do começo ao fim sem errar ou esquecer um verso sequer.
Depois fica o resto do dia quietinho, quietinho.
E nosso labrador? Esquece que eu sou seu dono, não ela.
É.
Amélia parece não gostar de mim. Tenho minhas dúvidas se é bem assim, e
até digo isso pra minha mãe e minha irmã, amiga mais íntima dela.
Moça prendada. Trabalha e ainda ajuda nos afazeres da casa. Mora com os pais
e mais dois irmãos, o mais velho, da minha idade, companheiro da sinuca no bar
do Dito e do futebol no último domingo do mês no clube. Frequenta os cultos dominicais.
Estuda. Ótima aluna, futuro brilhante pela frente.
Sou tímido, bem sei, mas não sou pestilento. Ora essa! Não me considero ótimo
partido, nem de se jogar fora.
Talvez, e só talvez, se melhor me conhecesse, ela entendesse o que
realmente está acontecendo.
Ou seja, que estou caidinho por
ela.
Quando mencionei “que também não gosto dela”, foi só pra disfarçar esse
sentimento que toma conta do coração, do espírito, da mente, tipo “corpo e
alma” daqueles que se rendem aos encantos de uma mulher. No caso aqui, eu.
Também confesso que “gostaria de
gostar” quer dizer “estou apaixonado loucamente por ela”.
O que me resta?
Contrariar quem diz “esse rapaz não presta, um dia está com uma, outra
dia com outra, quando não com as duas ao mesmo tempo”, ou quem exclame quando
me vê com as gêmeas (quinze anos, lindas
de dar dó), ”viu só, eu tinha razão, ele
não presta”, sem sequer saber que são minhas primas mesmo, filhas da irmã mais nova
de minha mãe.
Decidido. Vou mudar.
Primeiro. Não frequentar mais o bar do Dito no sábado à tarde, esquecer as
pescarias, e, claro, concluir a faculdade.
Segundo. Aplicar-me e dignificar ainda mais o ambiente de trabalho,
aprender mais e mais meu ofício e, claro, economizar, deixar de ser mão aberta.
Parar de em apresentar tão desleixado. Tipo, banho todo dia. Faça calor,
frio, faça sol, faça chuva. Usar desodorante, “perfuminho” discreto aos sábados
e domingos. Escovar os dentes de manhã, após as refeições e antes de dormir.
Diariamente. Sim, claro, andar alinhado,
nos trinques, como dizia meu avô.
Terceiro. Estar assim como não quer nada nos mesmos ambientes por ela
frequentados, o que inclui a igreja.
Amélia, Amélia, me aguarde.
(João Neto)