quarta-feira, 27 de março de 2013

Crônica (Feitos um para o outro)


Godofredo e Hermenegildo estão iguais postes de iluminação na esquina, canto superior direito da praça da matriz da pequena e bucólica cidade interiorana.
Domingo. A missa está no sermão, pois, mesmo diante do burburinho da freguesia e dos barraqueiros na feira livre, ouve-se a voz grave do padre ecoando pelas caixas de som espalhadas no interior do tempo, só ali, admoestando os fiéis que moderem o comportamento e participem mais das atividades igreja.
Os dois compadres observam, o que mais gostam de fazer, enquanto decidem entre o gostoso pastel de pizza da barraca da Gertrudes, a mais conhecida da feira, e o saboroso e nutritivo caldo de cana do Belarmino, que recentemente deixou a comodidade da aposentadoria para ganhar uns trocados com o engenho de cana.
- Não é a neta da...
Godofredo segue o olhar de Hermenegildo.
- É.
- Mas é mesmo.
Eles se referem ao casal que sobe de mãos dadas atravessando a praça na direção deles.
- Ela é a avó escarrada, incluindo os óculos.
Godofredo ri do comentário do seu compadre.
- E você rastejava na grama por ela.
- Eu era adolescente. Inocente de tudo. Ela me engabelou isso sim.
- Sei, sei.
- E foi. Tanto que quando terminamos o namoro, nunca mais olhei pra cara dela.
- Sei, sei.
- Compadre, isso ficou no passado – Hermenegildo encerra o assunto, contrariado com o rumo da prosa.
O casal de jovens está passando por eles.
- Bom dia. Paz de Deus – cumprimenta o rapaz, trajado de terno e gravata.
- Bom dia. Amém – Hermenegildo retribuiu o cumprimento e a saudação, enquanto Godofredo o faz com um leve movimento da cabeça.
O casal toma rumo à avenida, dois quarteirões acima.
- Feitos um pra outro.  Como pode?  Deus existe. Quem é  o mocinho?
- Não sei, compadre. Não me recorda ninguém que eu conheça – responde Godofredo – Quanto à jovem, até a cor do seu vestido é a cor de preferência da avó.
- Nem me lembre.
- Lembro. Roxo – Godofredo enfatiza a última palavra da frase, rindo.
- Compadre, pelo menos posso dizer que  alguém um dia me amou. E muito.
- Não estou insinuando nada. Roxo.
Hermenegildo opta por calar-se. Sabe que Godofredo o provoca, mas sem maldade. Cinquenta anos de amizade possibilitam conhecer uma pessoa.
- Então, caldo de cana ou pastel?
- Os dois – Hermenegildo decide.
 Enquanto caminham pela calçada, Hermenegildo procura tirar do pensamento a imagem da antiga namorada, avó da mocinha que já alcança a avenida de mãos dadas com o namorado. Ele e Berenice gostavam de passear de mãos dadas nas alamedas da antiga praça da matriz - saudades -  dando voltas ao redor do coreto, sentados no banco, ela recostada em seu ombro, ouvindo a música oferecida à ela vinda do serviço de alto-falante.
De soslaio, Godofredo espia o compadre ao seu lado. Sorri. Sabe exatamente o que ele está recordando. Aquela expressão em seu rosto lhe é bem conhecida.

 (João Neto)