segunda-feira, 4 de março de 2013

Crônica (Modorra)


- Escuta a conversa – o menos sujo fala com ironia e baixinho, cutucando o mais sujo.
Os dois andantes sentados no banco da direita da fileira de três ficam a ouvir  a conversa dos dois aposentados que estão sentados no banco da esquerda.
- Saiu a lista das pessoas mais ricas naquela famosa revista... Como é mesmo o nome da revista?
- Sei lá.
- Daqui a pouco eu lembro.
- E...
- Nada. Não conheço a maioria.  Aliás, tem até nome de artista... Hebe, Etti, Elke... Sei lá, algo assim.
- Artista? Silvio Santos?
- Tem o Silvio também. 
- E...
- Ué. É bom saber.
- Bom saber sobre pessoas ricas? Só me faltava essa.
Os dois andantes coçam as longas barbas, enquanto atentam ainda mais pra conversa. Interessa-lhes as pessoas abonadas daquela cidade. Clientela.
- O nome da revista... O nome da revista... Puxa, não lembro.
- Deixa pra lá.
Os três bancos estão sob a sombra de uma frondosa árvore na praça da matriz da pequena e bucólica cidade interiorana. Afora aqueles quatro sossegados, mais o taxista no ponto, a moça da banca de jornal, alguns comerciantes e funcionárias das lojas ao redor, não há mais nenhuma viva alma.
Certamente pelo sol inclemente do meio-dia.
Os dois andantes ajeitam nos ombros os respectivos sacos brancos de cor cinza onde guardam seus poucos pertences e nenhum documento. Sabem que daquele mato, os dois aposentados, não sai coelho. E a fome está apertando.
Deixam a praça rumo à alguma casa próxima. Talvez do tal Silvio.
- Fedor, não é mesmo?
- De onde vem? Daqueles dois bestas.
- Eles chegaram ontem, pelo que ouvi dizer.
- Problema da prefeitura. Daqui a pouco tem mais pedinte que gente por aqui.
- Esperar solução da prefeitura? Nem com reza.
Os dois aposentados caem na gargalhada, ficando em pé.
Pra eles, os andantes dobrando sossegadamente a esquina de cima, a catinga encalacrada ao banco que adotaram como quarto não atrapalha o bate-papo diário com a rapaziada ali na praça, mas que já está passando dos limites a impertinência dos dois incômodos, isso está, é o que todos comentam. A cidade não é mais como antigamente.
- Então inté. Preciso ir. O almoço deve estar pronto.
- Então inté.
Seguem rumos diferentes, leste/oeste.
- Lembrei.
O aposentado volta-se, mas seu compadre está muito distante e certamente a surdez cada vez mais crescente impedirá que ouça, mesmo que fale bem alto, grite mesmo, o nome da tal revista. Tudo bem.
E continua em seu vagaroso caminhar pela calçada, quase tropeçando num cão vira-lata magricela que atravessa a rua e cruza sua frente em direção à porta aberta da igreja.
 
(João Neto)

 

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