sábado, 2 de março de 2013

Crônica (O dia em que a cidade sumiu)



Ao acordar ao raiar do dia, sexta-feira, noite bem dormida, “sono dos justos”, pé direito primeiro no chão, espreguiçando-se, ele olha com olhos remelentos à sua esquerda, a cama de casal, sabendo que a esposa já está na cozinha preparando o café da manhã, “bobis” na cabeça. Levanta, andando lentamente até o banheiro, pés descalços, coçando o saco por sobre a calça do pijama, e, em frente ao espelho, observando sua cara sonolenta, de repente, inexplicavelmente sente uma sensação que está faltando alguma coisa?

Sensação espiritual. Esquisita.

Vestido para o trabalho, terminando por calçar a botina “surrada”, carteira em um dos bolsos da calça, camisa de brim cor verde limão abotoada, olhando “as horas” no despertador percebe, como sempre, estar bem atrasado, corre até a cozinha, rapidamente bebe um gole de café puro, beijando de “selinho” a esposa, ela desejando “bom dia de trabalho”, de repente, inexplicavelmente sente uma sensação que está faltando alguma coisa?

Sensação espiritual. Esquisita.

Ele caminha assobiando como faz toda manhã, menos aos domingos, pelo corredor lateral da casa “financiada“ pelo BNH, em direção ao portão e, de repente, ao olhar para frente, vê algo assustador.

Cadê a rua?

Cadê as casas dos vizinhos, as árvores, o barulho?

Cadê a cidade?

Nada do lado direito, nada do lado esquerdo, em frente sequer a calçada de sua casa. Tudo termina no muro. Nada além do muro.

Cadê céu?

Cadê o chão?

Cadê tudo?

 “Mulher, mulher, corre aqui”.

A esposa estranha, mas não atende de imediato, continuando os afazeres.

“Mulher, mulher, corre aqui, agora”.

O chamado é gritante, angustiante.

Quando ela se põe ofegante ao lado do marido, também vê.

Cadê a cidade?

Nada da Margarida lavando a calçada de sua casa. Nem os latidos irritantes do cachorrinho da filha mais nova da Justina.

Cadê o céu?

Cadê o chão?

Cadê tudo?

Corte rápido.

O casal acorda, pondo-se de imediato sentado na cama, trocam um olhar. Trinta anos de convivência possibilita entender o silêncio de ambos.

Ainda em silêncio, marido e mulher levantam, calçam os chinelos, caminhando, mãos dadas, atravessando o corredor, a sala, abrindo a porta vagarosamente.

Ufa. Não passou de um pesadelo.

A cidade está lá.

Na dúvida, beliscam-se. Estão acordados.
 
(João Neto)

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