Final de semana. Sábado.
- Chuvinha boa, Godofredo.
- Boa.
Os dois compadres estão sentados numa das mesas da padaria localizada no
centro da pequena e bucólica cidade interiorana, ao lado da igreja matriz.
- Esse tempo me faz meditar.
- É?
Hermenegildo olha para o compadre, suspira.
- E?
Hermenegildo continua calado.
- Desembucha logo – insiste Godofredo.
Neste exato instante um casal caminha em direção à praça poucos metros
abaixo, pela calçada do outro lado da rua. Pelo vidro que veda uma das portas
do estabelecimento, Godofredo e Hermenegildo o observam atentamente,
curiosidade aguçada.
O rapaz protege a cabeça com o capuz da blusa. A moça está debaixo da
sombrinha que impede o chuvisco atingi-la.
Os dois compadres sabem, pelas conversas diárias na praça, que o jovem
casal está no centro do vulcão prestes a explodir. Dentre vários ensinamentos
de “Zé da Truta”, pensador local, amigo
de Hermenegildo e Godofredo, consta este
– no qual meditava Hermenegildo - certa atividade cidadã é praticada com
revanchismo, perseguições, acomodações de apadrinhados, coronelismo e outras
modalidades que a censura não permite serem mencionadas; o que antes era “meu
jeito de fazer é esse, quem está do meu lado, está do meu lado, quem não está
do meu lado, sifu, ou seja, aos amigos as benesses da lei, aos inimigos o rigor
da lei” hoje está travestido de religiosidade, ou seja, lobo em pele de
cordeiro.
- Você estava meditando...? – a voz de Godofredo os traz de volta ao interior
da padaria.
O jovem casal distancia.
- Coitado desses dois. Tão novinhos e cheios de vida, com um futuro
maravilhoso pela frente – pensa em voz alta Hermenegildo.
- Quando entraram nessa, suponho que tinham consciência de serem apenas
soldados nesse imbróglio todo – argumenta com pragmatismo Godofredo.
- Será, compadre? E o idealismo? A juventude engajada?
- Compadre, há quantos anos estamos testemunhando acontecerem coisas
inomináveis?
- Faz tempo.
- Então. Quem entra na chuva é pra se molhar.
A balconista se aproxima com o pedido, deixando sobre a
mesa as duas xícaras de café expresso, retornando ao balcão, ao lado do caixa, porta
de entrada, onde está a gerente.
- Eles estão falando do assunto do momento, o casal?
- Acertou em cheio.
Corte rápido.
Segundo se comenta na pequena e bucólica cidade, “Zé da
Truta”, inveterado bebedor, diz sempre que numa situação onde os superiores
permanecem nos bastidores, aqueles que estão na linha de frente são peças
descartáveis. Diz mais, no futuro, caso sobrevivam, continuarão sendo o que sempre
foram, ou seja, meros soldados. “Zé da Truta” diz, entre um gole e outro, que essa atividade não se assemelha ao jogo de
xadrez, seria muito nobre, e sim a uma guerra cujos participantes não possuem
escrúpulos ou arrependimentos. E conclui sem muito entusiasmo que um dia tudo irá
mudar, e será pra melhor, pois pior não pode ficar.
(João Neto)