segunda-feira, 8 de abril de 2013

Texto (A história que nunca foi contada)


(continuação)
UM
A esbaforida adolescente de óculos e cabelos aloirados é a primeira a chegar. A multidão que vem logo atrás está na eminência de ultrapassá-la de rompante, mas tomando a frente o homenzarrão tido como xerifão do pedaço estica os braços lateralmente e grita “todo mundo parado” e todo mundo para. Ninguém é bobo, nem nada.
A estreita rua de paralelepípedos está abarrotada de gente em seus cem metros finais. Gente rica, gente humilde, gente diplomada, gente analfabeta, gente sebenta, gente perfumada, gente de fé, gente descrente, gente boa, gente à toa, gente educada, gente malcriada, gente grandona, gente pequenininha, por fim, afora os mortos e doentes acamados, todos os demais viventes da pequena e bucólica cidade interiorana estão ali presentes.
A adolescente de óculos e cabelos aloirados está próxima, perto, pertinho mesmo.
Todos silenciam. O homenzarrão tido como xerifão do pedaço com os braços esticados lateralmente também.
A adolescente de óculos e cabelos aloirados está próxima, perto, pertinho mesmo, mais perto ainda, inclinando-se.
Silêncio sepulcral.
O menino de cinco anos espremido entre os adultos tenta chamar a atenção de sua mãe puxando a ponta de sua camiseta, necessitado que está em urinar, mas depois do puxão na orelha entende que é melhor se aguentar.
Seis anões e seis anãs lá, bem lá no final da fila, se revezam nos ombros uns dos outros para que possam visualizar o que acontece adiante.
Logo atrás do homenzarrão tido como xerifão do pedaço com os braços esticados, o motorista da prefeita com o pé direito empurra o vira-lata que o seguira desde o inicio da correria, mas o danado do cachorro é teimoso e permanece ao seu lado.
A adolescente de óculos e cabelos aloirados está próxima, perto, pertinho mesmo, ainda mais perto ainda, inclinada, esticando o braço direito em direção...
- Ohhhhh! – murmura a multidão uníssona, ecoando a manifestação pelo céu cor de anil. O vira-lata late três vezes e, esperto, cessa o latido.
- Silêncio – exige em seguida o homenzarrão tido como xerifão do pedaço com os braços esticados lateralmente.
Silêncio sepulcral.
A adolescente de óculos e cabelos aloirados está próxima, perto, pertinho mesmo, ainda mais perto ainda mais, inclinada, braço direito esticado, a ponta do seu polegar quase a tocar...

(continua)

(João Neto)