quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crônica (E a senhorinha leu...)


A eficiente gerente e a bela balconista da padaria localizada na região central da pequena e bucólica cidade interiorana conversam distraidamente sobre as festividades do dia anterior, feriado de 1º de maio. Sobre o balcão do caixa onde se encontram está aberto o quinto guardanapo de papel escrito pelo visitante.
O caciquismo na política local é manifesto. No mundo atual, o caciquismo é anacrônico.  Aqui não. De tempos em tempos mudam os caciques, apenas.
Como em tantos outros municípios semelhantes, neste um dos maiores empregadores, se não o maior, é o poder público.  Assim também acontece em sua economia, onde o montante de dinheiro circulante advém desse poder.
Ontem, no entardecer, deparei-me com duas pessoas conversando na praça de certo bairro de classe média. Sem ser percebido por alguns minutos, o diálogo que desenrolava me pareceu interessante, não que trouxesse uma máxima irretocável. Não entendi o motivo deles se calarem ao notar minha presença, mas o que pude captar me pareceu suficiente., claro, considerando que as informações coletadas  foram concebidas pelos dois simpáticos e sociáveis conversadores.
Na vida cotidiana desta cidade existiriam quatro poderes invisíveis, ocultos aos olhos dos mais simples, inacessíveis à maioria esmagadora de seus habitantes, numa proporção que chega a 99,99% mais 0,0099%.
Um deles seria a maçonaria. Estranhei os conversadores sussurrarem essa palavra, temerosos, como os antigos se referiam ao câncer.
Outro seria certa religião, cujos fiéis seguem  a máxima “irmão é o batizado, os demais são criaturas de Deus”, os conversadores ressaltando que  “religião não se discute”.
O terceiro poder seria o setor terciário,  com maior enfoque no comércio informal. Os conversadores insinuaram que fazem suas compras em cidades vizinhas, ou algo assim.
O quarto seria o chamado “mundo” das drogas ilícitas e aqueles que gravitam em torno dele. Os conversadores deixaram entrelinhas sua origem e os motivos de não ser compelido à sua devida punição.
 Pareceu-me que aquelas duas pessoas tratavam esse assunto de poderes ocultos como se participa de um churrasco entre amigos. Incrível.
Ora, se assim acontece, fica compreensível o “eterno”  caciquismo, que se nutre das consequências nefastas desse ambiente e, como cobra peçonhenta, envenena-o utilizando-se desses atributos, ou poderes ocultos, para se  apresentar maliciosamente como seu antídoto mais eficaz.  Ingerência do poder público na economia e na geração de empregos somada a esses poderes ocultos, ambos sob a tutela do caciquismo, traz a lume  a   questão: “E o povo?”
Ora, pelo que se vê,  tais próceres enviesados apregoam "ao povo diversão e pão”, enquanto se fartam de manjares, enfastiados da realidade e acomodados confortavelmente em camarotes dourados.
- Quem escreveu isso?
A pergunta de supetão feita pela freguesa mais habitual do estabelecimento faz com que a gerente instintivamente empurre às pressas o guardanapo pra dentro da gaveta, fechando-a.
- Escreveu o quê? – ela pergunta à senhorinha de coque.
Indiferente ao ar estupefato da moça de olhos verdes e sem se importar com o riso da bela balconista, a senhorinha, que há alguns minutos aguardava em frente ao caixa, entrega o tíquete e o dinheiro na quantia exata da despesa, um exemplar delicioso de pudim de pão, despedindo-se com um aceno de mão, cruzando a rua vagarosamente, enquanto o motorista do único e grátis ônibus circular aguarda que termine a travessia.
João  Neto

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