Tendo ele quatro
anos de idade, sua família transferiu definitivamente residência para a capital
do estado vizinho, onde, depois de muita luta, estabilizou-se
financeiramente. Ele, então, passou sua
infância, adolescência, juventude,
maturidade, graduou-se, casou, e, agora, visita pela primeira vez desde então aquela
pequena e bucólica cidade interiorana onde nasceu cinquenta anos atrás. Sua
esposa o acompanha, os filhos ficaram na companhia dos avós.
Por mais que
insistisse, seus pais não quiseram acompanha-los, preferindo o sossego do apartamento
e a companhia dos netos.
Filhos únicos, eles
não mais mantiveram contato, bem como nunca mais retornaram, nem em visita. Assim,
provavelmente foram esquecidos pelos poucos parentes. Quando deixaram a cidade,
os pais tinham falecido, e pela petição de miséria que se encontravam nenhum deles
fizera questão de despedir-se.
- Tua mãe nunca
me deixou olhar as fotos que ela guarda naquela caixa de papelão.
Ele e a esposa
estão sentados na praça em frente à igreja matriz. As fotos mencionadas por ela
não inteiram meia dúzia, porém, sua mãe as guarda como relíquias, ninguém tem
autorização para bulir nelas.
- Talvez não tenha
chego o momento – ele afirma.
- Talvez –
concorda sua esposa.
Estão saboreando
delicioso sorvete de massa, sabor cereja, comprado na sorveteria localizada na
esquina da praça. Palácio do Sorvete, nome sugestivo.
- Você também
nunca me disse o que as fotos retratam...
Ele está na
última colherada da deliciosa iguaria.
- Nunca – ele confirma
a afirmativa da esposa.
Quando saíram da
sorveteria e caminharam até o banco debaixo da árvore mais frondosa da praça,
conversavam sobre lembranças e as poucas que ele poderia ter daquela cidade
poderiam estar registradas naquelas fotos, pois em sua memória não trazia nenhuma.
- Mas agora não
tem desculpas, não é?
- É – ele, discreto
sorriso nos lábios, responde.
Ela também
sorri. Trinta anos de convivência fizeram com que soubesse pela expressão dos
olhos, por um simples gesto, o que está se passando no íntimo do esposo.
Duas horas da
tarde. Apesar do sol brilhando no céu com poucas nuvens, o frio retorna aos
poucos, indicando que a noite a temperatura novamente se aproximará do zero
grau.
- Vamos conhecer
o interior da igreja – ele propõe.
- Vamos – ela aceita
o convite.
O casal se
levanta, caminhando lentamente em direção da escadaria frontal do prédio com
suas duas torres pintadas em tom pastel.
- Quem são eles?
– a pergunta de Zé Louco para Tonho Munheca é pertinente, pois estavam a
observar o casal a mais de dez minutos e até aquele momento não tinham atinado de
quem se tratava.
- Pois também tô
matutando aqui: quem são eles? – replica Tonho Munheca – Duvido que sejam de
alguma família daqui, senão eu já teria descoberto, mas talvez sejam dessa
gente nova que está mudando prá cá de uns tempos pra cá.
- Ora, se
fossem, um dia ou outro os teríamos visto aqui pelo centro da cidade, não é? –
argumenta Zé Louco.
- E não é! –
concorda Tonho Munheca – Pensando bem, possuem um quê dos Almeida, não é?
- Não vejo traço
dos Oliveira.
- O jeito de
andar do sujeito lembra eles.
- E não é que
lembra. Andar meio sossegado, pernas curvas e abertas, calcanhar juntados.
- Por outro
lado, é mais alto que qualquer deles. E bem mais magro. E não é careca. Sei
não.
- Isso é. Gente
dos Bastos?
- Dos Bastos?
Humm, hummm... Nada a ver.
- A mulher não é
daqui, nem parente de gente daqui, isso tenho certeza.
- Pode ser, pode
ser. Mas ela não te lembra da matriarca dos Cintra?
- ... Hummm, hummmm...
Não é que lembra?
Quanto o casal
adentra pela porta principal da igreja, os dois compadres retornam ao assunto
que tratavam.
- Tá chegando o
dia.
- É.
Nesse momento se
aproxima o Chico Dente, moço solteiro e atualmente desempregado, que todas as
tardes comparece na praça, pois gosta de prosear com os aposentados que sempre
estão por ali, se inteirando das últimas fofocas da cidade.
- Tarde.
- Tarde –
responde Zé Louco.
- Boa tarde –
responde Tonho Munheca.
Chico Dente sem cerimônia
senta entre os dois compadres.
- Tá chegando o
dia – fraseia só pra puxar assunto.
- E não é – diz Zé
Louco.
- Pois é –
confirma Tonho Munheca.
(continua)
João Neto
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