domingo, 4 de agosto de 2013

Crônica (O encontro do calo com o pisante)



Distinto cavalheiro, tua abordagem à minha pessoa quando eu caminhava pela calçada do outro lado da rua daquela casa com gente saindo pelo ladrão e vossa portentosa pessoa se encontrava no centro dela, rei diante daqueles vassalos inertes à sua magnificência, foi deveras pomposa.
“E aí, está a distribuir sabedoria popular por essa rua?”, seu vozeirão delicado se dirigida à minha pessoa demonstrando alegria inconteste por nosso esbarrão tão inesperado, isso sem menção ao teu punho fechado relando a ponta do meu nariz e o esmagar do coitado do meu calo de estimação – gesto que deveras me impressionou pela sutileza do pisão – que quedei e calei-me.
Não permaneça irritado só porque eu disse abruptamente num tom além do necessário para ocasião tão solene,  “olha só, criou coragem agora, mesmo vinte minutos atrás demonstrar interesse leitoral às escondidas em minha sabedoria.”, pois tais palavras saíram instintivas, instinto que poucas vezes controlei.
Admiro muito vossa pessoa.
Se não deixei perceber tal admiração, perdão. Confesso que me peguei no enlevo de sua benevolência e sua concentração extraordinária quando se achava ao lado do padre na celebração dominical vespertina. Mais que concentração, compenetração. Mas que compenetração, devoção. Aquela vestimenta preta em contraste com teu rosto avermelhado ressaltava ainda mais tuas humildade e fé.
E olha que minha presença ali se dava após uma década de ausência.
Essa mesma admiração se fez presente horas depois daquele mesmo dia de sol, quando eu caminhava pela avenida principal de nossa pequena e bucólica cidade interiorana e aquele carro caríssimo ultrapassa o sinal vermelho e no volante vossa pessoa saboreando uma bebida refrescante, pois está na viva em minha memória a inscrição “cerveja” que li na lata vermelha, mesmo de relance pela velocidade do possante.
E alguém tão religioso não estaria se embebendo de outra bebida que não fosse vinho, não é, distinto cavalheiro?
Sujeito mais errado que este que vos fala tenho comigo e tenha contigo que não há. Tudo bem. Rendo-me à pecha.
Creio que quando estiver eu em frente ao nosso Pai, a conversa se dará entre mim e Ele, como acontecerá a tua, certamente confessarei todos meus pecados – nem que leve um tempão, até porque Ele é Eterno e estarei pertinho, pertinho dele, olhos nos olhos. Porém, desconfio que não demore tanto assim, pois levarei comigo meu “anote e busque”, onde precavidamente terei arquivado meus pecados pela ordem dos dez mandamentos e abrirei com satisfação a tela para que Ele faça a leitura, mesmo eu desconfiando que Ele saiba tim-tim por tim-tim do que escrevi ali. Sabedoria, distinto cavalheiro, sabedoria.
Tendo como atestado tua conduta por demais de ilibada teu tempo não atingirá um giro completo dos ponteiros do relógio. Nada mais justo, nada mais justo. E nem precisará do “anote e busque”. Afinal, dois ou três pecadilhos não merecem tanta parafernália, não é?
Pra cada pecador como eu alguém propenso à santidade como vossa pessoa, é o combinado entre o destino e a imensidão.
Afinal, de que assunto tratávamos mesmo?
Ah, é. Do nosso encontro na rua.
Esquenta não, se nem o capitão se preocupou com isso, este miserável muito menos, até porque meu calo está acostumado a ser esmagado.
E relembro, até com certa humildade disfarçada, e agora?
 João Neto

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