quarta-feira, 15 de maio de 2013

Texto III (O azar do venturoso Cidinho, o sorveteiro)


(continuação)

TERCEIRO


 Natália, Maycon

Domingo outonal. Noite agradável.
Recanto do Sol, vila de casas populares mais periférica da cidade. Duas ruas precariamente asfaltadas, iluminação pública deficiente. Cinquenta famílias de baixa renda privilegiadas.
Na rebeldia de seus quinze anos, Natália sonha em sair dali. Nascida e crescida naquela vila, seu horizonte se resume em cuidar dos dois irmãos mais novos até a mãe chegar do trabalho de serviços gerais no posto de saúde municipal do bairro vizinho, escola, voltar para casa, cuidar dos dois irmãos mais novos, tapar os ouvidos para não ouvir a gritaria das constantes brigas dos pais, dormir, e no dia seguinte continuar nessa rotina.
Maycon é seu passaporte. E tem consciência que sua beleza discreta e o corpo sensual são seu bilhete de viagem só de ida.
Não importa sua melhor amiga insistir que Maycon é caso perdido, e nem que é nascido e criado na vila vizinha, e que puxou ao pai, cumprindo doze anos por assalto a mão armada.
Decidiu, ele é seu passaporte. Bonitinho, se veste na moda, tênis caro e tudo o mais. E não é usuário de drogas como a maioria dos garotos da vila. Suspeita que trabalha como “passador” no ramo, porém, depois que o tiver laçado definitivamente dará um jeito nisso, tirando-o desse mundo e fazendo com que trabalhe honestamente.
Caminham de mãos dadas pela calçada da rua de sua casa. De onde estão até lá dois postes com lâmpadas quebradas.
“Essa é hora de chegar?” certamente ouviria de sua mãe, mesmo não sendo nem meia-noite, muito cedo para estar em casa, mas “segunda-feira é dia de branco”, como sempre diz seu genitor.  Não se esquiva das carícias mais abusadas de Maycon, ela encostada ao primeiro poste sem iluminação e ele se atarracando nela. As investidas dele não ultrapassariam o seu limite, até porque sempre soube se safar dos mais atrevidos desde seus onze anos. É seu trunfo e agradece sua mãe pelos conselhos dados. Nos seus quase dezoito anos, Maycon não é tão experiente assim para fazê-la perder o controle da situação.
Voltam a caminhar.
Duas ruas sem saída. Após a vila a primeira propriedade da zona rural do município, uma chácara, mistura de criação de porcos com plantação de café, pertencente a uma das famílias mais ricas do localidade. As casas de quatro cômodos e banheiro, os quintais murados como divisa uma com a outra, fazendo duas fileiras de vinte e cinco moradias.
Ela nunca permitiu que Maycon a acompanhasse até a frente de sua casa, penúltima da rua por nome “do Horizonte”. Dentre outras razões, a principal é porque seu pai não gosta nem de ouvir falar o nome dele, que dirá saber que estão “ficando”, mesmo com o consentimento de sua mãe. Ele sempre diz que ela é a garantia de uma aposentadoria melhor para o casal.
Depois de mais algumas carícias e beijos, despedem-se no segundo poste com lâmpada queimada, e enquanto ela caminha o trajeto restante, Maycon aguarda e corre em sua direção quando ouve seu grito.
- Meu Deus, meu Deus!
Natália está defronte sua casa, olhando fixamente para a cerca em frente.
- Meu Deus, meu Deus! – o grito é dilacerante.
No mesmo momento em que Maycon chega ao seu lado, sua mãe abre a porta da sala, atravessando o pequeno espaço de terreno, ultrapassando o portão, partindo pra cima do rapaz com intenção de estapeá-lo.
- O que fez pra minha biluzinha, seu vagabundo?
Na porta aberta surge o pai, apenas de cueca, e, com clara intenção de contribuir na agressão ao se aproximar de sua companheira, do vagabundo e de biluzinha olhando na direção da cerca, mudos, estarrecidos. Ele se posta detrás da companheira, ofegante, emudecido, estático como eles, olhos vidrados naquele ponto da cerca.
 A pífia iluminação malmente permite a visão de um homem amarrado no palanque, ensanguentado.
Da casa vizinha aparece o filho mais velho com um pedaço de ferro na mão, da outra casa a mulher mais neurótica da vila, já acompanhada de um e de outro morador.
- Não! Não! O que fizeram com o coitado do sorveteiro? – a imensidão absorve seu grito histérico.
O pequeno grupo observa, momentaneamente sem ação, e aos poucos clareia a visão de Cidinho, nu da cintura pra cima, filete de sangue dividindo seu rosto, seu peito, marcando sua calça jeans, respingando em seu tênis.
- Ele está mortinho da silva, melhor avisar os “home” – sugere o moço com o pedaço de ferro na mão, curvado em direção ao magro corpo sem vida.
João Neto

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