Duas crianças traquinas
fazem uma aposta valendo a pipa de papel crepom de cor marrom que encontraram
perdida no descampado. “E cachaço não é robalo”, já dizia Zé Truta, grande “filosófo”
daquela pequena e bucólica cidade interiorana, aos seus pais.
Com autorização dos pais,
as duas sairiam de manhãzinha e, partindo do bairro mais chique e terminando na
última rua do bairro mais periférico, contariam quantos buracos existiriam nas
ruas da localidade.
Na noite anterior, as
crianças anotaram com caneta esferográfica vermelha em folhas de papel o número
de buracos que supunham existir nas ruas, dobraram as folhas por quatro vezes,
depois grampearam numa das pontas, tornando-as invioláveis.
Entregam as folhas para um samurai.
Entregam as folhas para um samurai.
Por que um samurai?
Supostamente por, inesperadamente e silenciosamente, ter surgido do nada em frente à duas crianças no exato momento em que, na manhã de quarta-feira, dariam o pontapé inicial no cumprimento da aposta.
Se há outro motivo, quem saberia? Óia, óia... guarde contigo tal conjectura.
Se há outro motivo, quem saberia? Óia, óia... guarde contigo tal conjectura.
O que importa é que o
disciplinado espadachim proteja com sua própria vida os números constantes
naquelas folhas dobradas e grampeadas, e,
com seu jeito peculiar, assim se posta e aguarda, impoluto naquela roupagem toda negra.
Estando ainda nas ruas do
bairro chique, as duas crianças percebem que o número anotado em suas folhas não
se aproximaria do número dos buracos, e a aposta tinha sido no número exato e, até aquele momento, estava 100 por 1, ou algo assim.
Ah, que pena! Nenhuma
delas ficaria com a pipa de papel crepom de cor marrom que encontraram
perdida no descampado. “Quem não arrisca não se coça”, teria filosofado Zé da
Truta aos seus pais diante de tamanho imbróglio.
Na verdade, na verdade,
estão elas a se divertir. E contar.
Dois buracos na rua das
casas dos bacanas. Mais dois buracos na rua da casa da menina bonita. Mais dois
na rua da casa do riquinho metidinho. Dois buracos na rua da casa do irmão do vereador. Surpresa! Apenas um buraco na rua da casa do advogado.
Mais dois buracos na rua... e por aí vai. Bairro chique, bairro classe média,
centro, bairro mais ou menos, e bairro, mais bairro, outro bairro, inclusive aquela rua daquela casa monumental.
Ao final da tarde,
tardezinha mesmo, as mochilas que trazem às costas não trazem mais o gostoso lanche e
a garrafinha com suco gelado, as duas crianças terminam a contagem dos
buracos na última rua da vila mais periférica. Ufa! Exatamente nove buracos possui essa última rua, nem mais, nem menos, igualzinha a outras.
Extenuados, mas
satisfeitas pela tarefa concluída, pelo telefone celular chamam por seus pais, que
estão bem próximos, pois durante o dia todo acompanharam a aventura das
crianças bem de pertinho, rindo quando se surpreendiam com tantos buracos.
No ponto de partida, as
duas crianças se aproximam do samurai e, bem baixinho, sussurram em seu ouvido
o número exato dos buracos contados.
O temível guerreiro pega
as duas folhas grampeadas que estão guardadas sob a faixa de sua cintura, retira
os grampos, desdobra-as, lê, dobrando como no original uma e outra, guardando-as
novamente sob a faixa de sua cintura.
Sabe-se lá o motivo, o
samurai, tão silenciosamente e repentinamente como surgira, desaparece entre a
fumaça que sempre usa nos momentos mais imprevisíveis para se esvair aos olhos
dos presentes.
E, quem diria, leva com
ele a pipa de papel crepom de cor marrom que as duas crianças tinham encontrado
no descampado. “Samurai, como traíra, com fiança não se pesca” filosofaria Zé
da Truta rindo até perder o fôlego diante de momento tão impagável.
João Neto