- Muito cuidado com as palavras. As palavras em si são ocas.
Zé da Truta está pescando. Ao lado do “filosófo” sentado no
barranco sob a sombra de uma frondosa árvore estão Godofredo e Hermenegildo, os
dois compadres, amigos de longa data.
- Muitos dentre nós se dizem companheiros, mas as traíras deste
rio se envergonhariam se comparadas a eles.
Godofredo e Hermenegildo permanecem silenciosos, atentos à ponta
de suas varas e ao palavreado do “filosófo” que olha fixamente para a
corredeira mansa do rio.
- Outros afirmam serem amigos, mas nem a cascavel na moita ataca
tão traiçoeiramente como eles.
Godofredo sente o puxão, levantando a vara, trazendo fisgada uma
baita traíra.
- Muitos dizem que foram fisgados pela solidariedade, mas fazem
do coração apenas um músculo.
Hermenegildo auxilia o compadre a tirar o peixe do anzol e pra em seguida ser coloca-lo cuidadosamente no
puçá, voltando ao seu lugar.
- Muitos falam em sustentabilidade, mas desconhecem o valor desta maravilhosa natureza que
nos foi dada graciosamente e sua importância para a sobrevivência do bicho
homem.
Hermenegildo dá um chasco em sua vara, surgindo à superfície uma
valente traíra, minutos depois vencida pelo cansaço e pela destreza do
pescador.
- Muitos falam sobre enricar civicamente, mas tiram da vida
aquilo que não lhe é facultado negar e não redistribuem conforme a vida lhes
favoreceu.
Godofredo e Hermenegildo silenciosamente arrumam a “tráia”.
As duas últimas inteiraram nove traíras, todas de bom tamanho, número
suficiente para uma boa fritada.
- Muitos dizem que o óleo quente queima além da epiderme, mesmo
assim tropeçam e sacodem a frigideira.
Estão os três amigos caminhando pela beirada da estrada de
retorno pra casa. Ao friozinho de outono, o que até lhes causou certa surpresa pela
boa pescaria realizada, Godofredo e Hermenegildo não dão a mínima importância,
pois lambem os beiços, antecipadamente saboreando o prazer que terão ao
degustar as traíras bem temperadas com limão e sal e fritas no óleo fervendo,
acompanhadas de uma “branquinha” da boa.
- Muitos falam que são estudados, ou que são artistas, ou que
são solidários, mas seus olhos não vestem beca, não são afinados, só trazem
frieza descolorindo sua íris.
Godofredo e Hermenegildo silenciosamente ouvem atentamente o
“filosófo” Zé da Truta, que sabem estar numa ressaca daquelas pela bebedeira da
noite anterior, enquanto observam ao longe as luzes da cidade.
- As palavras em si são ocas, meus amigos. Nossos atos, nossas
atitudes é que dão significado real para elas. Quando falamos ou escrevemos
podemos falseá-las, enganando os inocentes, ludibriando os gananciosos, sufocando
os corajosos, prejudicando os simples, bajulando os poderosos, corrompendo os
honestos... falamos e escrevemos sobre tantas coisas. É certo que em
algum momento dessa vida vã quando estivermos sozinhos em frente ao espelho
nossos olhos deixarão transparecer o que realmente somos, se do bem ou se do
mal, e então compreenderemos que jamais enganaríamos, ludibriaríamos,
sufocaríamos, prejudicaríamos, bajularíamos, corromperíamos, ou quaisquer outros
atos que ousássemos praticar, se permitíssemos aflorar a criança que trazemos
desde todo o sempre em nosso espírito.
- E não é? – arrisca a comentar Godofredo, mas beliscado no
braço por Hermenegildo, cala-se novamente.
Afinal, quem neste mundão de Deus, além dos moradores da pequena
e bucólica cidade interiorana que desponta à frente, tem essa oportunidade de conviver com esse
“filosófo” e simpático bebum chamado carinhosamente pelos amigos de Zé da
Truta? Mesmo nunca se entendendo bulhufas, reconhecendo, porém, que as palavras
ficam bonitas quando pronunciadas por sua voz fanhosa, isso ninguém nega.
E que venham as traíras fritas. Bão, muito bão.
João Neto