sexta-feira, 26 de abril de 2013

Crônica (As palavras em si são ocas)



- Muito cuidado com as palavras. As palavras em si são ocas.
Zé da Truta está pescando. Ao lado do “filosófo” sentado no barranco sob a sombra de uma frondosa árvore estão Godofredo e Hermenegildo, os dois compadres, amigos de longa data.
- Muitos dentre nós se dizem companheiros, mas as traíras deste rio se envergonhariam se comparadas a eles.
Godofredo e Hermenegildo permanecem silenciosos, atentos à ponta de suas varas e ao palavreado do “filosófo” que olha fixamente para a corredeira mansa do rio.
- Outros afirmam serem amigos, mas nem a cascavel na moita ataca tão traiçoeiramente como eles.
Godofredo sente o puxão, levantando a vara, trazendo fisgada uma baita traíra.
- Muitos dizem que foram fisgados pela solidariedade, mas fazem do coração apenas um músculo.
Hermenegildo auxilia o compadre a tirar o peixe do anzol e pra  em seguida ser coloca-lo cuidadosamente no puçá, voltando ao seu lugar.
- Muitos falam em sustentabilidade, mas desconhecem o valor desta maravilhosa natureza que nos foi dada graciosamente e sua importância para a sobrevivência do bicho homem.
Hermenegildo dá um chasco em sua vara, surgindo à superfície uma valente traíra, minutos depois vencida pelo cansaço e pela destreza do pescador.
- Muitos falam sobre enricar civicamente, mas tiram da vida aquilo que não lhe é facultado negar e não redistribuem conforme a vida lhes favoreceu.
Godofredo e Hermenegildo silenciosamente arrumam a “tráia”.  As duas últimas inteiraram nove traíras, todas de bom tamanho, número suficiente para uma boa fritada.
- Muitos dizem que o óleo quente queima além da epiderme, mesmo assim tropeçam e sacodem a frigideira.
Estão os três amigos caminhando pela beirada da estrada de retorno pra casa. Ao friozinho de outono, o que até lhes causou certa surpresa pela boa pescaria realizada, Godofredo e Hermenegildo não dão a mínima importância, pois lambem os beiços, antecipadamente saboreando o prazer que terão ao degustar as traíras bem temperadas com limão e sal e fritas no óleo fervendo, acompanhadas de uma “branquinha” da boa.
- Muitos falam que são estudados, ou que são artistas, ou que são solidários, mas seus olhos não vestem beca, não são afinados, só trazem frieza descolorindo sua íris.
Godofredo e Hermenegildo silenciosamente ouvem atentamente o “filosófo” Zé da Truta, que sabem estar numa ressaca daquelas pela bebedeira da noite anterior, enquanto observam ao longe as luzes da cidade.
- As palavras em si são ocas, meus amigos. Nossos atos, nossas atitudes é que dão significado real para elas. Quando falamos ou escrevemos podemos falseá-las, enganando os inocentes, ludibriando os gananciosos, sufocando os corajosos, prejudicando os simples, bajulando os poderosos, corrompendo os honestos... falamos e escrevemos  sobre tantas coisas. É certo que em algum momento dessa vida vã quando estivermos sozinhos em frente ao espelho nossos olhos deixarão transparecer o que realmente somos, se do bem ou se do mal, e então compreenderemos que jamais enganaríamos, ludibriaríamos, sufocaríamos, prejudicaríamos, bajularíamos, corromperíamos, ou quaisquer outros atos que ousássemos praticar, se permitíssemos aflorar a criança que trazemos desde todo o sempre em nosso espírito.
- E não é? – arrisca a comentar Godofredo, mas beliscado no braço por Hermenegildo, cala-se novamente.
Afinal, quem neste mundão de Deus, além dos moradores da pequena e bucólica cidade interiorana que desponta à frente, tem essa oportunidade de conviver com esse “filosófo” e simpático bebum chamado carinhosamente pelos amigos de Zé da Truta? Mesmo nunca se entendendo bulhufas, reconhecendo, porém, que as palavras ficam bonitas quando pronunciadas por sua voz fanhosa, isso ninguém nega.
E que venham as traíras fritas. Bão, muito bão.
João Neto