terça-feira, 12 de março de 2013

Crônica(Dois compadres)


Dois compadres conversam no banco da praça da matriz da pequena e bucólica cidade interiorana, protegidos do sol da tarde pela sombra de uma frondosa árvore.
- Tá na internet. Cientistas americanos realizaram tomografias computadorizadas em 137 múmias, um dos maiores estudos já feitos sobre problemas cardíacos e vasculares em indivíduos mumificados. A pesquisa, publicada na renomada revista “The Lancet”, ontem (11.02.13), aponta indícios de problemas do coração, arteriosclerose e artérias obstruídas em parte dos corpos analisados.
- Compadre, perdeu tempo em ler essas notícias de americano é? E pergunto, pra que? Tudo embromação, isso sim.
- Continuando. Mais de 50% das múmias são...
- Essa eu acerto.
Fazendo pouco caso, Hermenegildo continua.
- .. do Eg...
- Não fale de onde são. Essa eu acerto.
Hermenegildo olha para o compadre sentado ao seu lado.
- Vejamos – Godofredo nem aí com o olhar reprovador de Hermenegildo – Algumas dessas múmias é provável serem daqui de nossa cidade. Aliás, não é errado afirmar que uma delas seja aquele “ex” - dá uma pequena pausa e sapeca - De quem estou falando? De quem? – enfatizando ironicamente a indagação.
- Dele? – Hermenegildo rebate a pergunta com a mesma ironia.
- E é, ué.
- Inté que tem razão – concorda Hermenegildo.
Godofredo faz menção de prosseguir, mas...
- Pera aí, ele ainda está vivo – Hermenegildo, puro bufão.
- Vivo? Ah, tá não. Ele pensa que vive, mas não vive não.
Os dois compadres riem a valer.
- Continuemos – prossegue Godofredo com ar professoral – Tem outra. Aquela “que todos sabem e ninguém diz”.
- Qual?
- É como acabei de frisar. “Todos sabem e ninguém diz”.
- Ah, sei – Hermenegildo fuça, fuça, fuça na cachola quem seria, e, presumindo ter identificado a quem se refere seu compadre, arremata – Isso, isso. Essa realmente é uma múmia. Eu tenho uma sugestão.
- Qual?
- Aqueles dois...
- Aqueles?
- É... A Q U E L E S – reafirma, com voz fantasmagórica.
Os dois compadres caem na gargalhada novamente.
Neste exato momento, a presença surpreendente, uma dessas múmias elencadas por eles cruza a praça em direção ao ponto de táxi, ao lado da banca de jornal.
Os velhinhos estranham. “Em plena terça-feira? Aí tem. Ele não sairia da toca a toa”, pensam uníssono, curiosos, mas permanecem quietos, observando, assim como também o fazem todos os outros aposentados e demais pessoas por ali lagarteando, o caminhar ritmado da mú..., do impactante cidadão tão próximo, mais perto, pertinho, sapato tão lustrado que dá pra pentear o cabelo relando sandália franciscana descorada. Birra pura.
- Boa tarde – ele os cumprimenta educadamente.
- Boa tarde – Hermenegildo retribui o cumprimento da mesma forma.
Godofredo o faz com um frio sinal de cabeça (rusga antiga, ainda não resolvida apesar dos anos, algo relacionado com barbante, cerol e pipa perdida).
Tudo continua como dantes na pequena e bucólica cidade interiorana.
 (João Neto)